A realidade é aterradora, injusta e vil, no todo e em suas particularidades. Sabendo disso, a humanidade criou o streaming. Se você, infiel leitor, de antemão não quer lidar com esses dois fatos, mas estiver curioso pra saber se a Netflix solucionou as angústias da existência, adianto: Não, e tem mais!
Aos que ficam, vamos falar de Ultimate Beastmaster.
Em uma breve sinopse (chupinhada descaradamente do IMDb, foda-se), “uma dúzia de atletas de diversas modalidades e nacionalidades competem entre si em uma pista de obstáculos - denominada ‘a besta’- pelo dinheiro, glória individual e orgulho nacional.”. Sim, orgulho nacional (???) é um dos motes desse game show que pode ser explicado para qualquer brasileiro como “tipo a Maratona do Faustão”. Vamos chegar lá.
De cara, no primeiro momento do primeiro episódio da primeira temporada, somos recebidos pela voz inconfundível do ator, roteirista e produtor Sylvester Stallone, aquele som distinto que somente uma boquinha torta, somada a uma vida inteira de abuso de esteroides anabolizantes conseguem produzir:
“A história é repleta de contos de homens e mulheres que superaram obstáculos inimagináveis para se tornarem grandes campeões”
O espectador atento não precisa de mais do que isso para entender que o brucutu está se referindo (direta e indiretamente) à própria filmografia, desde o clássico premiado Rocky, Um Lutador, até o meu-deus-que-lixo-de-filme-como-assim-isso-foi-financiado Falcão, o Campeão dos Campeões. Legal, a mini-sinopse que ele narra evoca bem os sentimentos de glória individual; além disso, já estamos condicionados a associar a palavra “campeões” com uma montanha de dinheiro, faz sentido. Mas e o orgulho nacional, o que tem a ver?!
Antes, um (ENORME) parênteses.
Me habituei a associar a carreira do Stallone ao que eu chamo de “emburrecimento do excepcionalista americano”. Calma, vou explicar: lembram que em Rambo: Programado para Matar, acompanhamos a vida de um ex-soldado atormentado pelos horrores da guerra, sem lugar na sociedade, que tem um surto psicótico e se aquartela em uma delegacia de polícia como lobo solitário homicida E suicida? Bem, em Rambo III esse mesmo protagonista resolve sozinho a guerra do Afeganistão, libertando a tiros de metralhadora o povo local das garras malignas (e maniqueístas) dos MALDITOS SOVIÉTICOS.
Nunca viu Rambo? Tudo bem.
No já citado Rocky, Um Lutador, acompanhamos a rotina sofrida de um homem comum, um pugilista amador vivendo do dinheiro de bicos e atividades moralmente questionáveis, até que por “acaso do destino” (ou artimanha de roteiro) o nosso herói ganha uma chance de enfrentar o grande campeão de boxe Apollo Creed. Várias montagens de treino e corrida depois, Rocky pisa no ringue para doze rounds de sangue, suor e óleo corporal, sendo inevitavelmente derrotado, mas ovacionado por todos que o assistem em um momento emocionante e agridoce. Ok? Ok. Em Rocky IV ele derrota um lutador geneticamente modificado (sim, é isso mesmo) dos MALDITOS SOVIÉTICOS em uma luta de exibição em Moscou para provar a superioridade dos Estados Unidos.
Percebe o padrão? Agora você se pergunta, o que a tendência de Sylvester Stallone em transformar absolutamente tudo o que toca em obra de propaganda estadunidense tem a ver com a Gincana do Gugu super produzida da Netflix? Então… meio que tudo.
(FECHA ENORME PARÊNTESES)
Ultimate Beastmaster possui 3 temporadas, totalizando 29 episódios de muita correria, pirueta e emoção. Sério, entretenimento puro. Quer dizer, “puro” até que se olhe com atenção.
Assim como os filmes supracitados, o que começa como um emaranhado de histórias de superação e feitos de atletismo de pessoas de todo o mundo, acaba abruptamente por se tornar um duelo de nações (muito do confuso, diga-se de passagem) em que são motivos de piada os aspectos culturais e comportamentais de cada um dos territórios participantes, fazendo referência a rixas históricas (por vezes belicosas) e forçando rivalidades em brincadeiras que, na falta de palavra menos amarga que “racistas”, podem ser tidas como “raciais”. Além disso, as tais “histórias de superação” vão adquirindo contornos mais espinhosos, em que se tornam “troféus morais” inquestionáveis, por exemplo, ter servido às forças armadas de seu respectivo país em alguma guerra ou simplesmente ser um americano “que não desiste nunca”.
Foi lá pelo quarto ou quinto episódio da terceira temporada que eu percebi (mesmo com aquele sono de alta madrugada assistindo a temporada anterior inteira) a ideologia do excepcionalismo americano invadindo violentamente meu entretenimento inocente, tal qual um drone teleguiado norte-americano invadindo a residência de alguma família inocente no oriente médio ou mesmo um grupo norte-americano de mercenários armados abrindo fogo contra inocentes à luz do dia. Vocês sabem, o jeitinho americano.
Com isso em mente, a produção se torna o equivalente a assistir uma versão de bolso dos Jogos Olímpicos, acometido de uma forte ressaca de vinho Sangue de Boi com gelo. A narração “padrão” é a estadunidense, mas ao usuário do serviço de streaming é dada a opção de assistir a uma versão com comentários de compatriotas. Então temos duas versões: a “normal” (dos EUA) e a “estrangeira” (do seu país de origem). Estranho, né? Eu diria até excepcional.
Esse caráter distinto que os Estados Unidos tentam atribuir a si mesmos, suas práticas e seus valores (reais ou não) vai muito além do simples patriotismo. O excepcionalismo americano é a crença (entre os próprios norte-americanos) de que o mundo deve apoiar e celebrar a ideologia “americana”. Além disso, que o mundo está em dívida com os EUA e que este mesmo mundo deveria procurar ser mais como os EUA. É o grito de Rocky na URSS com a bandeira listrada nos ombros, o America First! do Presidente Donald Trump em comícios, a celebração de um homem agarrado a uma barra de ginástica por mais tempo que outro homem agarrado à mesma barra de ginástica em um reality show de pessoas cuja habilidade de se agarrar a barras de ginástica representa a potência de um país.
Agora um lembrete.
Ainda se morre de fome no mundo. Não n’outro mundo, neste mesmo. No mesmo mundo em que há Estados Unidos da América.
O IFPRI (Instituto Internacional de Pesquisa sobre Políticas Alimentares) calcula em 11 bilhões de dólares o custo anual para acabar com a fome do mundo. Esse valor representa menos de 10% da fortuna de Jeff Bezos, CEO da Amazon, um único cidadão estadunidense.
Com o valor gasto pelos EUA nas guerras do Iraque, Afeganistão, Paquistão e Síria (cerca de 1,7 trilhão de dólares) seria possível cortar, bem pelo fundo, o mal que assola as vítimas da fome por pouco mais de 154 anos.
Tudo isso é fato conhecido, documentado e publicizado. Não obstante, ainda se morre de fome no mundo. Veja, neste mesmo mundo, não em outro. No mesmíssimo mundo em que há Estados Unidos da América.
Por quê?
Acho que precisamos aguardar a próxima produção de Sylvester Stallone…