Cisterna

Jares
4 min readDec 9, 2021

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Vovó dizia que quando morre gente boa chove o dia inteiro. Já faz três dias que não se vê um pingo d’água daqui pra lá, nem nuvem se anuncia. A calha ressecada da cisterna chega a ranger quando bate um vento mais forte, parece um sopro de demônio no espinhaço da gente. Vovó dizia que quando morre gente boa chove o dia inteiro. Por certo não morreu mais ninguém que preste.

Escureceu tem nem meia hora, mas já não se vê um palmo na frente do rosto. Quem voltou da cidade e do roçado já jantou e foi dormir, nem menino se escuta brincando. Por aqui, a noite é breu e silêncio. Ninguém ousa desrespeitar o império da noite, não se ouve mais nem passarinho cantar.

Só a rasga mortalha.

Dizia vovó que, no sertão de antigamente, menina quando crescia era pra casar, e era pra casar bem casado! Arrumar um rapaz bonito, bem-apessoado e bem de vida. Ela me contava a história de uma carpideira das boas, menina nova, que ia pros velórios e chorava de doer, aquele choro sentido de quem morre um pouquinho com a morte alheia. Essa menina deu de se engraçar com um filho de rico da cidade, numa paixão daquelas de “até que a morte nos separe”. E separou mesmo. A mãe do menino nunca aceitaria casar os dois e, quando descobriu, armou uma emboscada na porta do cemitério e rasgou a menina de fora a fora com uma faca. Vovó jura por Deus que foi verdade!

A lenda é que o espírito da menina virou coruja branca, cor de alma, e vaga pela noite escura chorando seu choro e seus berros de carpideira até hoje. Quem escutar o lamento, onde quer que esteja, seja que hora for, tem que gritar “viva os noivos!” pra rasga mortalha passar em paz sem levar ninguém com ela. Só lembro de vovó com essa história.

Alguma coisa quebrou o silêncio, um barulho de motor. Pela brecha da janela espio, no meio daquele breu desgramado, dois faróis baixos acesos, lá pra cima da igrejinha: tem alguém secando a cisterna. Uma caminhonete, a única dessas de gente grande que tem por aqui, do dono da fazenda de cima. A luz apagou. Se tinha mais alguém brechando igual a mim, agora já não via mais nada. O único som além do silêncio era o barulho da água correndo pra dentro de um tambor. Fí de rapariga, por certo vem toda noite pegar água da gente.

O barulho da caminhonete já vai ficando distante quando o silêncio é quebrado de novo. Um grito sofrido, estridente, daqueles que não tem cristão no mundo que não se arrepie, atravessa o sítio de fora a fora, rasgando tudo em seu voo rasante.

“VIVA OS NOIVOS!!”, se ouve, quase que em coro, vindo de todas as casas. Ninguém é nem doido de ficar calado. Depois disso, silêncio total por mais uns segundos, até que se escuta um estrondo ao longe. Depois mais nada. O silêncio se impõe e ninguém em sã consciência vai desrespeitar a noite e seus mistérios. A noite é dos morto vagar no mundo, já dizia vovó.

De manhã cedo foi que encontraram, na beira da estrada, o carro. Não tinha nada perto em que ele pudesse ter batido, mas estava com a frente completamente destroçada, como se tivesse sido rasgada em pedaços. Ao redor do carro formou-se uma pequena multidão de curiosos; dentro do carro mesmo, nem um pé de gente. Ninguém. O povo, que não é besta, se juntou e pegou logo o tambor de água na carroceria, que devia ter uns 200 litros, antes de ligar pra alguém da cidade vir tirar o carro dali. Voltaram pro sítio pra devolver a água pro seu lugar. Quando chegaram, viram uma multidão maior.

“É sangue, meu deus, é tanto sangue!”, uma mulher gritava, desesperada e confusa. Um pequeno rio de sangue podia ser visto descendo do pé da igreja até a rua da praça. Saía sangue do registro da cisterna. Vários homens com marretas se revezavam para quebrar a tampa de alvenaria e abrir o reservatório — porque a caixa era vedada pra não dar mosquito — até descolar a parte concretada e revelar o que havia lá dentro: o fazendeiro, ladrão da água, no fundo da cisterna. Seu corpo parecia completamente seco, como se já apodrecesse há anos ali, mas a seu redor a pouca água que restava se misturava com litros e litros de sangue.

Silêncio, ninguém falou mais nada. Uma senhora me cutucou com o cotovelo e sussurrou, apontando para o defunto: “viva os noivos…”.

Recolheram o corpo seco do fazendeiro, lavaram a cisterna e colocaram a água do tambor de volta. Fosse de outro jeito, as calçadas estariam fervendo de gente, todo tipo de burburinho e fofoca, aquele conversadeiro de lorota bom sobre como o miserável foi parar ali dentro, todo triturado daquele jeito, com o carro destruído lá longe. Mas de alguma forma, a gente sabia. Todo mundo sabia e por isso o silêncio. Cada um tomou seu rumo de casa, na rua só o corpo seco e os homens da perícia da cidade.

Vovó dizia que quando morre gente boa chove o dia inteiro. Ainda bem que depois de tudo ainda tem água na cisterna…

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