Intervalo

Jares
5 min readMar 1, 2022

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Banheiro comum com diversas cabines na cor azul. Filtro dá a aparência de imagem ser antiga, talvez dos anos 60/70

– Quinze para as oito. O governo começa a tomar as primeiras providências contra as chuvas que assolam o Rio de Janeiro.

– O Uruguai, na véspera da visita do presidente Kubitschek.

– Greve dos funcionários públicos paralisa a Alemanha.

– No Rio, incêndio em prédio abandonado de emissora de rádio e televisão assusta, mas não faz nenhuma vítima.

– Daqui a pouco, no Jornal da Noite.

– Eeeee foi! Intervalo comercial! — berra pelo megafone o diretor do jornal.

– Essa letra também tá uma merda, viu? O camarada tem que fazer força pra ler essa mixaria de tão miúda! — Augusto, âncora do Jornal, fala entre uma tragada e outra de seu cigarro.

– Calma que a gente resolve: Ô NEUZA, CHAMA O MENINO DO CARTAZ PRA REFAZER! — o som do megafone ressoava com um agudo estridente.

– Coloca o papel na bancada que eu me viro, esse negócio de ler olhando pra câmera me deixa vesgo! — as cinzas caiam para os lados, quase manchando o paletó de seu companheiro de bancada.

– Não, a gente aumenta a letra. Ainda tem metade da novela antes de a gente ir pro ar de novo.

– Então eu vou tirar a água do joelho.

As idas de Augusto ao banheiro eram de lei, sempre entre a escalada do jornal e a hora de entrar no ar: algumas vezes para urinar, outras para cheirar a quantidade de cocaína ideal que o mantinha intacto e muitas outras vezes para se encontrar às escondidas com a assistente de palco do estúdio vizinho. Mas hoje, por algum motivo, ele só queria tomar um ar.

O banheiro era branco e azul Tiffany, com cantos arredondados e cabines de madeira de frente a uma pia larga com torneiras prateadas sob um espelho enorme que cobria a parede inteira ao lado da porta. Hoje, excepcionalmente, parecia mais mal iluminado que o habitual. Ele não perdeu tempo, abriu a torneira e fez uma concha com as mãos, jogando água no rosto. Ao olhar para cima, viu pelo reflexo o quanto estava pálido. “Maquiadorazinha preguiçosa!”, pensou, antes de pentear as sobrancelhas e o bigode com os polegares. Então percebeu algo mais estranho.

Sua silhueta, no reflexo, parecia se mover com leve atraso. Não saberia explicar se alguém o perguntasse, mas era como se a imagem no espelho levasse uma fração de segundo a mais, mínima, quase imperceptível, para reproduzir seus movimentos. Se fixou nessa impossibilidade física até que percebeu sua visão periférica estreitando, ficando turva, e então ouviu ao longe um baque seco. O susto que tomou com o barulho o trouxe de volta. Estava em pé, com as mãos molhadas, encarando seu reflexo que, agora, o obedecia melhor. “Talvez seja hora de maneirar na droga” refletiu de forma bem-humorada. Sacudiu as mãos ainda úmidas e foi em direção à porta.

Mas a porta não se abria. A maçaneta parecia pregada no lugar, não se movia um milímetro. Impaciente, Augusto secou as mãos por dentro do paletó e tentou mais uma vez, sem sucesso. Sabia que ainda tinha alguns minutos até a entrada do jornal no ar, mas não gostava de perder tempo.

– RAIMUN-DÔ! RAIMUNDO, ABRE AQUI!! — Augusto gritava de modo rude, enquanto dava murros na porta.

Em menos de um segundo a porta se abriu. Do outro lado, Raimundo, o faxineiro responsável pela limpeza do banheiro, o olhava como se estivesse ali parado há tempos, esperando ser chamado.

– Raimundo, seu Paraíba! Que raios você faz que não dá um jeito nessa porta?!

– Augusto Magalhães Bonifácio. — disse o faxineiro, pondo as duas mãos nos ombros do âncora, o colocando de frente a ele.

– Tu tá me achando com cara de viado, seu bostinha?! Tira a mão de mim!!

– Augusto Magalhães Bonifácio — repetiu, no exato mesmo tom, o faxineiro — você morreu.

“Você morreu.”

As palavras ecoavam pela mente de Augusto com a força de uma explosão. Você morreu. Ele não sabia como, mas sabia que era verdade. Naquilo que parecia um instante infinito congelado no tempo, no qual nem mesmo o ar parecia existir, ele voltou a face para trás e viu, pela primeira vez, seu corpo caído no chão do banheiro: pálido, contorcido, completamente urinado. De seu nariz e ouvidos escorriam finos filetes de sangue.

– Eu morri. — repetiu, em um tom completamente abobalhado.

– Sim, você morreu.

– E quem é você? Digo, quem é você… de verdade?

– Eu não tenho nome, Augusto. Para muitos eu sou Deus, para outros eu sou o pai ou a mãe. O amor, o afeto. Para você, eu sou o faxineiro Raimundo, o senhor que limpava o seu vômito entre um intervalo e outro. Foi por mim que você chamou na morte.

– Mas se eu morri, como eu tô imaginando tudo isso? Eu preciso voltar ao jornal! Ninguém me encontrou?!

Augusto oscilava entre a confusão e um sentimento profundo de melancolia. Já não olhava mais para o corpo no chão. Preferia viver aquele instante que para ele parecia ser vida do que contemplar a imagem de seu cadáver.

– Não há tempo neste momento, ao menos não da forma como você percebe o tempo. Seu coração parou há oito segundos. Seu corpo foi encontrado pelo diretor de jornalismo há seis anos. Seus filhos fora do casamento brigam pelo seu patrimônio na justiça há algumas décadas. Você perderá sua audição por completo dentro de três minutos. O estúdio em que você morreu foi demolido em 1996 e hoje é um memorial da Fundação Augusto Magalhães para tratamento de dependentes químicos. Seu corpo sem vida acaba de se defecar espontaneamente. Ainda é 31 de julho, sua mãe está em trabalho de parto. Não há mais tempo, esqueça isso.

– Raimun- Deus, eu- Deus? Você é um deus? Eu não sei como falar com o senhor…

– Não precisa saber.

– Bem, eu… onde nós estamos?

– Nós não estamos. Você não está. Na verdade, você não é.

De repente, como se assim fosse desde sempre e para sempre, Augusto percebeu que nada mais percebia ao seu redor. Não havia arredores, para ser exato, nem mesmo breu ou escuridão havia. De fato, como a figura que antes se parecia com o faxineiro e agora não mais se podia vislumbrar disse: não estava, nem era.

– Havia tanta coisa, mas tanta coisa a se fazer! Tanta vida, eu era tão jovem! Quantas pessoas eu maltratei, meu deus?! Dinheiro, prestígio, poder… tudo para acabar deitado em cima da minha própria merda em um banheiro qualquer! Por quê?!

Nada. A completa ausência de qualquer coisa que se pudesse chamar de “coisa” era rasgada pelo choro irracional. Já não havia corpo, nem voz, nem nada. Aos poucos, como em metamorfose, todas as mágoas, memórias e arrependimentos de Augusto foram desaparecendo também, até que apenas o choro restasse. Um choro no vazio de onde não há.

Segunda-feira, 1 de agosto de 1927, meia-noite e dois. A enfermeira corta o cordão umbilical da criança. Um choro se ouve por todo corredor da Maternidade Cascadura, no subúrbio do Rio de Janeiro.

– Vai se chamar Augusto! — suspira feliz a mãe, entre sorrisos de amor e cansaço.

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