Paraíso astral

Jares
3 min readMar 30, 2022

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Já passava das duas da manhã quando Sagitário saiu da loja de conveniência, cinco cigarros soltos e uma garrafa de plástico com cachaça nas mãos. Não fazia frio, mas a grama ao redor atraía um sem número de insetos, então o casaco que usava naquela noite estava mais que justificado. Os mosquitos ensaiavam seus falsetes às estrelas, por vezes ao pé do ouvido, enquanto ela despejava o próprio corpo no banco de madeira.

Áries, aos solavancos, brigava com o vazio enquanto descia a ladeira mal iluminada. Não estava tão bêbado quanto gostaria, apenas um tanto contrariado e excepcionalmente teatral. Ao longe, avista Sagitário deitada na praça, as duas mãos na nuca, cotovelos para o céu. Num instante, busca toda sobriedade que lhe resta e se recompõe, um pouco mais consciente a cada passo, na medida que se aproxima.

– Dia ruim? – Áries resmunga entredentes, por debaixo de um sorriso amarelo. Sagitário opta por ignorar. Áries, sem pestanejar, continua.

– Acredita que eu achei uma nota de cinquenta de lá pra cá?! Coisa boa andar a pé.

Enquanto falava a esmo, Áries procurava espaço para se sentar no banco, acomodando as pernas de Sagitário em seu colo. Ele não era espaçoso.

– Às vezes eu acho que a gente força uma barra, tá ligado? — Sagitário disse, reticente, após o que pareceu a Áries ser uma eternidade em silêncio.

– Como assim?

– A gente. Quer dizer, não “a gente" nós dois, não só a gente. “A gente" todo mundo. Acho que a gente força uma barra…

– Não sei se eu sei do que você tá falando, Saginha.

Áries, que até agora encarava a praça, se vira na direção de Sagitário, se afastando um pouco. Sagitário o traz de volta com os calcanhares.

– Sei lá, às vezes parece que a gente nunca saiu da adolescência. A gente paga conta, faz plano, dá voltas e voltas, essa coisa toda… e a nossa ideia de diversão ainda é encher a cara e findar em uma praça qualquer amargando.

– Calma, você tá se divertindo? – Áries retrucou em um repente. Agora os dois gargalhavam.

– Você me entendeu, nem vem!

– A gente é liso, Saginha. A gente tá chegando na casa dos trinta, ainda estudante, no meio da crise…

– Mas sempre tem crise, cara! Nossos pais tiveram a deles, os pais deles também. Por que que a gente parou no tempo? Porra, eu comecei a beber na rua com quinze! Não pode ser só isso!

Áries não responde, apenas suspira e corrige a postura. O tom de Sagitário não é de indignação, mas de incredulidade. O silêncio que se segue dura uma eternidade a mais que o primeiro, mas parece passar em um instante. Uma das pernas de Sagitário sai de cima do colo de Áries e desliza entre as suas costas e o banco, enquanto a outra perna o agarra pelo quadril, em um balé quase cósmico. Na eternidade do instante, ambos se encontram entre torsos, braços e lábios. Não há razão, apenas ímpeto. Quando cessa a eternidade, apenas resta o arfar dos corpos.

– O que você quer? – Áries balbuciava abobalhado, ainda preso ao momento findo.

– O que eu quero? Eu quero tudo. Quero tudo e depois quero mais! O que ainda não foi inventado, o que não tem pra hoje, o que nunca será possível. É isso que eu quero! E você, o que você quer?

– Agora eu quero isso aí que você disse, mas antes ia sugerir um cigarro.

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