Sísyphos

Jares
2 min readMar 2, 2020

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Às 5 em ponto do dia de ontem, a sirene acordava os recrutas do Comando do 3° Distrito Naval.

Feitas as camas, postos calções, é dada a missão: pintar a base dos postes da Rua Coronel Flamínio. É bem sabido que, noutros tempos, o Coronel gentilmente cedera a própria casa de bom grado. Contudo, mesmo no auge de seu desprendimento de centenário falecido, jamais cederia seus postes, nunquinha!

Obviamente era im-pres-cin-dí-vel expurgar de qualquer mácula estes iluminados símbolos elétricos do Progresso (aquele da bandeirinha do país, com P maiúsculo mesmo), imperativo moral caríssimo à corporação, cuja importância ficava atrás somente da Ordem (por razões sin-táticas). Para tanto, nossos heróis nacionais, armados até os dentes de sacos de cal e baldes d’água, partem em longa jornada até o outro lado da rua. Era preciso limpar os postes do Coronel!

Aí segue a receita: branco no preto, branco no preto, branco no preto. As pinceladas incansáveis dos marinheiros cobrindo as mesmas palavras de novo e de novo, enquanto veem o fim da rua sumir no horizonte de postes.

O sol já indica o fim da manhã quando a última maldita coluna de concreto condutora de energia elétrica recebe a última maldita pincelada branca de cal. Missão cumprida!

Agora já passa das 22h e a Rua Coronel Flamínio, rodeada de soldadinhos, já foi dormir. É nessa hora que algo desperta.

Um vulto, que não se sabe quem é, simplesmente passa, como um implacável buraco negro, cuja presença se pode meramente imaginar, sendo possível enxergar apenas seus rastros. Talvez o mais astuto entre os mortais, montado em sua motoneta de estridentes quarenta cilindradas, levando incontáveis baldes de um líquido negro na garupa.

Aí se segue a desfeita: preto no branco, preto no branco, preto no branco. As pinceladas instintivas desse ser incerto cobrindo o mesmo cal de novo e de novo, transformando o horizonte na infinita ilusão óptica de uma casa de espelhos.

O sol já indica o fim da madrugada quando, em seu primeiro ato ao alvorecer, o primeiro transeunte a caminhar pode, para sempre, ler e reler:

Totem da carência de saneamento.

Às 5 em ponto do dia de hoje, a sirene acordava os recrutas do Comando do 3° Distrito Naval…

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